O Auto da Compadecida: Da força da TV ao novo jogo das redes sociais

A gente que vive de cultura está sempre na correria, mas também precisa de tempo para estudar e afiar as ferramentas. Como parte da minha Pós em Produção Cultural, desenvolvi um artigo para a disciplina de Mídias Digitais que quero compartilhar com vocês. A provocação foi analisar o fenômeno de "O Auto da Compadecida", um marco da nossa cultura. No texto, eu volto 25 anos no tempo para entender como a máquina da TV Globo criou um sucesso avassalador, num modelo de comunicação que era praticamente um monólogo. Depois, eu traço um paralelo com o lançamento da sequência e o cenário de hoje: saímos da força bruta de um único canal para um jogo descentralizado, de parcerias, algoritmos e, o mais importante, de diálogo com as comunidades nas redes sociais. É uma reflexão sobre como o nosso trabalho de produtor cultural mudou radicalmente. Deixamos de ser apenas artistas e gestores para nos tornarmos também estrategistas digitais e líderes comunitários. Este artigo é o resultado dessa análise, misturando o que estou aprendendo na teoria com os mais de 22 anos de prática no chão do palco e no set de filmagem. Confira a análise completa e depois me diga o que você acha nos comentários. O diálogo, agora, é a nossa principal ferramenta.

DIFUSÃO E CONSUMO DE ARTE E ENTRETENIMENTO NAS MÍDIAS DIGITAIS

Cleverson Schuengue

8/18/202517 min read

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O Auto da Compadecida: Lições de um Fenômeno para o Produtor Cultural, 25 Anos Depois

Lembro-me perfeitamente de estar na coxia empoeirada do teatro em 2007, em Pinhais, minutos antes de entrar em cena para minha primeira grande montagem com o GTP, o Grupo de Teatro de Pinhais. A peça era “A Farsa do Advogado Patellini”, uma comédia de costumes clássica, e eu vivia o personagem “Malandro” na peça. Foi minha primeira experiência real com um texto que exigia um tipo diferente de fôlego: palavras rebuscadas, um ritmo preciso e uma interpretação que bebia direto na fonte da commedia dell'arte. O desafio de fazer aquele humor ancestral, baseado em arquétipos e críticas sociais, funcionar para uma plateia contemporânea foi uma escola imensa. Aquela sensação, a de traduzir uma linguagem clássica para o povo, sem perder sua potência e sua inteligência, nunca me abandonou. É por isso que, hoje, como produtor cultural e diretor audiovisual, revisitar a obra que fez isso com maestria inigualável no nosso país, O Auto da Compadecida, é mais do que um exercício estratégico; é voltar para casa.

Analisar o fenômeno de seu lançamento, em contraste com o cenário midiático irreconhecível de 2025 – ano que aguarda sua sequência –, é realizar uma autópsia de um mundo que não existe mais, para entender, com a precisão, o que mudou, o que se perdeu e, fundamentalmente, quais lições podemos extrair para a nossa rotina diária. O sucesso avassalador do primeiro filme não foi um mero acaso; foi o clímax de uma estratégia de convergência pioneira, magistralmente executada por um gigante midiático em seu apogeu. Um modelo que, hoje, se revela um fóssil glorioso, quase impossível de replicar, forçando a nós, produtores independentes, a desbravar caminhos radicalmente distintos e, em muitos aspectos, mais desafiadores.

Neste ensaio, proponho uma análise aprofundada em três atos. Primeiro, faremos uma análise retrospectiva, mergulhando no terreno fértil do Cinema de Retomada que permitiu o surgimento do filme, dissecando a estratégia de convergência da Globo e a alma cultural da obra que a sustentou. Em seguida, daremos um salto para o presente, investigando a transição da convergência para a transmídia, do monólogo para o diálogo, e a ascensão do algoritmo como o novo e implacável curador cultural. Finalmente, usaremos o lançamento iminente de O Auto da Compadecida 2 como um estudo de caso em tempo real, um laboratório vivo que nos permite examinar as novas regras do jogo. É uma jornada do império do monólogo ao ecossistema do diálogo, uma reflexão sobre a evolução do nosso ofício e da nossa própria identidade como fazedores de cultura no Brasil.

Parte I: A Análise Retrospectiva – O Fenômeno de 2000

Seção 1: O Terreno Fértil – O Brasil do Cinema de Retomada

Para compreender a magnitude do impacto de O Auto da Compadecida, é imprescindível recuar alguns anos e analisar o ecossistema em que ele germinou. O filme não surgiu no vácuo; ele é fruto direto do período que ficou conhecido como o "Cinema de Retomada". Como produtor que vivenciou a ressaca dos anos anteriores, recordo-me da sensação de deserto. O início da década de 1990 foi um golpe quase fatal para a nossa produção cinematográfica. Em 1990, o governo de Fernando Collor, com um gesto tecnocrático e uma visão aniquiladora para a cultura, extinguiu a Embrafilme e o Concine. A comunidade cinematográfica, que já tecia críticas ao modelo estatal, viu-se subitamente órfã, sem fomento, sem estrutura e, pior, sem horizonte. A produção despencou para níveis residuais, e as telas de cinema foram quase que inteiramente dominadas por produções estrangeiras.

A reconstrução foi lenta e gradual, um trabalho de base legislativa que começou a dar frutos anos depois. A Lei Rouanet, promulgada em 1991, e, de forma mais decisiva para o nosso setor, a Lei do Audiovisual de 1993, já no governo de Itamar Franco, foram os tijolos fundamentais dessa reestruturação. Elas instituíram um modelo de fomento baseado em incentivos fiscais, transferindo para a iniciativa privada parte da responsabilidade de financiar a cultura. Os efeitos práticos, no entanto, só se tornaram realmente palpáveis a partir de 1995, com a estabilização econômica trazida pelo Plano Real durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Foi o início oficial da "reconquista do mercado interno e do reconhecimento internacional".

O otimismo era palpável. Filmes como

Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (1995), O Quatrilho (1996), e o aclamado Central do Brasil (1998), não eram apenas obras de arte; eram símbolos poderosos que ganharam destaque e prêmios internacionais. Eles provavam que o cinema brasileiro estava vivo, que tinha qualidade técnica, relevância narrativa e, crucialmente, potencial de mercado. O público brasileiro, há muito afastado de suas próprias histórias, começou a retornar às salas de cinema para se ver na tela.

Foi precisamente nesse cenário de renascimento e otimismo que as empresas privadas começaram a enxergar o cinema nacional não mais como um risco, mas como uma oportunidade de negócio rentável. E nenhuma empresa estava mais bem posicionada para capitalizar essa oportunidade do que o Grupo Globo. Em 1998, foi criada a Globo Filmes, um movimento estratégico que mudaria as regras do jogo. A emissora não estava entrando no mercado apenas para produzir; ela estava entrando para dominar, aproveitando um momento em que o Estado havia criado os incentivos fiscais e a indústria começava a se reerguer por conta própria. A Globo Filmes nasceu com uma vantagem competitiva que nenhum outro produtor independente poderia sonhar em ter: o poder de fogo da maior rede de comunicação televisiva do país. O terreno estava preparado, e a semente de

O Auto da Compadecida encontrou o solo mais fértil possível para florescer e se tornar um gigante.

Seção 2: A Estratégia Mestra – Convergência e o Monopólio da Narrativa

A genialidade por trás do sucesso de O Auto da Compadecida não reside apenas na qualidade intrínseca da obra, mas na arquitetura de produção e comunicação que a envolveu. O que Guel Arraes, com o respaldo da Globo Filmes, implementou foi um dos primeiros e mais bem-sucedidos casos de "convergência tecnológica" no Brasil, um conceito que o teórico Henry Jenkins definiria como o fluxo de conteúdo por múltiplas plataformas de mídia e a cooperação entre diferentes mercados midiáticos.

O projeto, desde sua concepção, foi pensado de forma dual, um "produto dois em um": primeiro, seria uma minissérie de quatro capítulos para a televisão, exibida em janeiro de 1999, e, depois, seria remontada como um longa-metragem para os cinemas, lançado em 2000. Essa abordagem "híbrida" não era um improviso, mas uma estratégia calculada. A prova mais contundente dessa premeditação foi a decisão de filmar toda a obra em película de 35mm. Para quem vem do audiovisual, isso diz tudo. Em uma época em que a produção televisiva padrão utilizava formatos de vídeo muito inferiores, optar pelo caro e complexo formato cinematográfico era uma declaração de intenções. Era a TV se apropriando da estética e da qualidade do cinema, um movimento que já tinha precursores dentro da própria emissora, como o diretor Daniel Filho, que entendia o valor de captar produtos televisivos em película visando sua longevidade e qualidade superior.

Essa fusão de linguagens foi a base para a consolidação do que a própria emissora chamava de "Padrão Globo de Qualidade", agora extrapolado para as telonas. A ideia era clara: usar a familiaridade da estética televisiva, os rostos conhecidos do grande público (o elenco era uma constelação de estrelas da TV) e a linguagem acessível para reconectar o cinema com a grande massa, especialmente a classe média, que, segundo Rossini (2014), era o público-alvo conservador em seu gosto que a Globo desejava reconquistar.

Contudo, a peça mais poderosa desse tabuleiro estratégico foi, sem dúvida, o marketing. Minha formação original em Marketing e Publicidade me permite analisar esse aspecto com um olhar mais técnico e, confesso, admirado. A Globo não precisou comprar mídia; ela era a mídia. A emissora orquestrou um perfeito e implacável monólogo de comunicação, criando um ecossistema fechado e autossuficiente. Durante semanas, a programação foi sistematicamente inundada com conteúdo relacionado à obra. Imagine a cena: no

Jornal Nacional, uma matéria sobre as locações em Cabaceiras, na Paraíba, exaltando a beleza do sertão. No Domingão do Faustão ou em outros programas de auditório, entrevistas descontraídas com Selton Mello, Matheus Nachtergaele e Fernanda Montenegro. Nos intervalos comerciais, não apenas trailers, mas pílulas de bastidores, teasers que criavam uma expectativa quase insuportável.

A emissora controlava 100% da mensagem, do planejamento à execução, sem ruídos ou intermediários. Ela não estava simplesmente divulgando um produto; estava construindo um evento nacional, transformando a estreia em uma pauta obrigatória. Eles levaram o produto para dentro da casa das pessoas, dia após dia, até que assistir a

O Auto da Compadecida se tornasse uma experiência coletiva, quase uma obrigação cívica. Foi uma demonstração de força avassaladora, uma aula de como alavancar os ativos de um mercado consolidado para penetrar e redefinir outro. Para um produtor independente da época, era como assistir a um deus movendo montanhas com um estalar de dedos.

Seção 3: A Alma da Obra – A Conexão Cultural Inabalável

Toda essa máquina de marketing, por mais poderosa que fosse, teria sido um canhão disparando em um deserto se o projétil não fosse carregado de uma potência cultural genuína. A estratégia foi o motor, mas a obra de Ariano Suassuna foi o combustível nuclear que fez tudo explodir em um fenômeno de popularidade. A comunicação massiva da Globo jamais teria funcionado com um produto anêmico ou desconectado da alma brasileira.

A genialidade da adaptação de Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão foi manter-se fiel ao espírito de Suassuna, que, em sua peça de 1955, já havia realizado uma fusão magistral. A narrativa bebe em fontes eruditas e populares, mesclando a estrutura do auto medieval, a estética do teatro circense, com a rica tradição da literatura de cordel nordestina. Essa combinação criou uma linguagem que era, ao mesmo tempo, universal em seus arquétipos e profundamente regional em sua roupagem.

No centro de tudo, temos João Grilo. O anti-herói "amarelo", pobre, mentiroso, covarde, mas dono de uma astúcia e de uma fé inabaláveis. Ele não é o malandro carioca que quer levar vantagem; ele é a personificação do "jeitinho brasileiro" em sua essência mais pura: a da sobrevivência. Sua inteligência é a única arma contra a opressão dos poderosos, a secura da terra e a hipocrisia das instituições. Como afirmam Santos e Fontes (2014), João Grilo pode ser associado ao "próprio brasileiro desprovido das máscaras", que luta e se redime conforme sua necessidade, superando o sofrimento com imaginação e fé. Ao seu lado, Chicó, o contador de histórias, o mentiroso lírico, que serve de contraponto poético e cômico à praticidade de Grilo.

Essa dupla dinâmica conduziu o público por uma jornada de catarse coletiva, impulsionada por uma crítica social e religiosa feita com um humor irresistível. O famoso episódio do enterro da cachorra em latim não é apenas uma piada brilhante; é uma denúncia contundente da ganância e da hipocrisia de setores da Igreja. O julgamento final, onde a Compadecida (Fernanda Montenegro), a figura de uma Maria popular e misericordiosa, intercede pelos pecadores, reflete a fé sincrética e a crença do povo em uma justiça divina mais compassiva que a dos homens.

O público não estava apenas rindo; estava se vendo na tela. Suas contradições, sua capacidade de rir da própria desgraça, sua fé, sua esperteza. Em 2000, o "engajamento" era um fenômeno analógico. Ele acontecia nas conversas de bar, nos almoços de domingo, nos corredores das empresas. Era o boca a boca, a experiência compartilhada de assistir "junto" com o resto do país a algo que falava diretamente à sua identidade. A Globo ativou essa conversa em escala industrial, mas foi a profundidade, a verdade e a relevância da obra de Suassuna que a mantiveram viva, transformando-a em um clássico instantâneo e um pilar insubstituível da nossa cultura popular.

Parte II: O Salto para o Presente – O Cenário do Produtor em 2025

Seção 4: Da Convergência à Transmídia – Uma Nova Gramática Narrativa

Avançar 25 anos no tempo é como saltar para outra dimensão. O mundo que possibilitou o modelo de O Auto da Compadecida simplesmente se desintegrou. A primeira e mais fundamental mudança conceitual que nós, produtores, tivemos que absorver é a evolução da "convergência" para a "transmídia". A estratégia de 2000, por mais visionária que fosse, consistia em pegar o mesmo conteúdo e reformatá-lo para uma janela de exibição diferente. Era uma via de mão única: da TV para o cinema. O público de hoje, hiperconectado e acostumado a universos narrativos expansivos como os da Marvel ou de Star Wars, não aceita mais essa passividade. Ele não quer ver a mesma história em outro lugar; ele anseia por experiências que expandam o universo que ele ama.

Como exercício criativo e estratégico, vamos imaginar o lançamento de O Auto da Compadecida hoje, sob a ótica transmídia. Meu trabalho como produtor e diretor criativo não seria apenas fazer o filme. Seria conceber uma galáxia de conteúdos satélites, cada um com sua linguagem e propósito, orbitando a obra principal. O planejamento começaria meses, talvez anos antes, com a construção desse universo.

No Instagram e no TikTok, não teríamos apenas trailers. Teríamos o perfil oficial de Chicó (@ReiDasMentiras), publicando Reels e vídeos curtos onde ele conta suas "causos" mirabolantes, sempre interrompido por um João Grilo cético que aparece nos comentários. Criaríamos um perfil para João Grilo (@ManualDoSobrevivente), onde ele daria "dicas" sarcásticas de como negociar com patrões, padres e cangaceiros, usando o formato de tutoriais rápidos. A Rosinha, filha do Major, poderia ter um perfil mostrando a vida opressora em Taperoá, gerando empatia e contexto para sua história.

No YouTube, o universo se aprofundaria. Lançaríamos uma websérie documental, com episódios de 10 minutos, sobre a história real do Cangaço no Nordeste, contextualizando a figura de Severino de Aracaju e seu bando. Outro quadro poderia ser o "Por Trás da Lábia", uma série de entrevistas com especialistas em folclore e literatura para analisar as referências culturais da obra de Suassuna. Tudo com uma linguagem dinâmica, feita para a plataforma.

Para um público mais engajado, criaríamos um podcast de ficção narrativa: "As Andanças de Taperoá". Nele, episódios semanais contariam histórias paralelas que aconteceram na cidade, aprofundando personagens secundários como o padeiro Eurico, sua esposa Dora ou o Cabo Setenta. Seria uma forma de manter a comunidade aquecida e imersa no universo entre as grandes revelações da campanha.

Essa abordagem transmídia transforma o público de espectador a participante. Ele não apenas consome, ele explora, descobre e interage. Para o produtor, isso significa que nosso trabalho se tornou infinitamente mais complexo. Não basta ser um bom contador de histórias em um único formato; precisamos ser arquitetos de mundos, fluentes na gramática de múltiplas plataformas.

Seção 5: Do Monólogo ao Polílogo – A Construção de Comunidades

A segunda mudança sísmica foi a quebra do monopólio da comunicação. A Globo falava, e a massa ouvinte, em um modelo

top-down, recebia a mensagem. Hoje, esse modelo é uma antiguidade. Nós, na Agência Quintal Criativo, e todos os produtores independentes do país, vivemos a realidade do

bottom-up: a construção de baixo para cima, artesanal, exaustiva e baseada no diálogo.

Nosso processo é o inverso do que a Globo fez. Quando produzimos um documentário sobre uma banda local ou um projeto de memória em nossa cidade, Pinhais, a divulgação não começa com um anúncio massivo. Ela começa com uma fagulha. Criamos um grupo fechado ou um canal no Telegram, para os primeiros apoiadores. Ali, compartilhamos os primeiros esboços do roteiro, os storyboards, os desafios da produção. Lançamos enquetes no Instagram para que o público ajude a escolher entre duas opções de pôster. Nós não entregamos um produto pronto; nós convidamos as pessoas para construí-lo conosco.

Essa dinâmica muda fundamentalmente a relação. A "audiência", uma massa anônima e passiva, se transforma em uma "comunidade", um grupo de indivíduos com nome, voz e um sentimento de pertencimento. Eles não são apenas consumidores; são embaixadores do projeto. Eles defendem a obra, compartilham o conteúdo e se tornam nossa principal força de divulgação. Meu papel como produtor, nesse cenário, transcende o de gestor ou artista; eu me torno um líder comunitário, um facilitador de conversas, um curador de relações.

É um trabalho gratificante, mas, como salientei, muitas vezes exaustivo. Exige uma presença digital constante, uma disponibilidade para interagir, responder, ouvir críticas e nutrir essa rede dia após dia. Não temos a verba para comprar a atenção do público; precisamos conquistá-la, pessoa por pessoa, clique por clique. É um trabalho de formiga, em contraste com o passo de elefante da Globo em 2000.

Seção 6: O Novo Gatekeeper – A Tirania Sutil do Algoritmo

Se antes o grande desafio era passar pelo crivo de um único e poderoso

gatekeeper – a curadoria da Globo, que decidia o que seria ou não um evento nacional –, hoje o cenário é paradoxalmente mais aberto e mais restritivo. O

gatekeeper não desapareceu; ele se multiplicou e se tornou invisível. Falo do "algoritmo curador".

As plataformas que usamos para distribuir e divulgar nosso trabalho – YouTube, Instagram, Netflix, Spotify – são regidas por códigos complexos cujo objetivo primário não é a relevância cultural ou a qualidade artística, mas a retenção do usuário. O algoritmo é programado para nos mostrar mais do mesmo, criando "bolhas" informacionais e culturais que são extremamente difíceis de furar. Se você assiste a muitos vídeos sobre cinema de ação, o YouTube dificilmente lhe recomendará um documentário poético sobre o pantanal.

Para nós, produtores, isso representa um desafio monumental. Guel Arraes precisou convencer a diretoria da Globo. Eu preciso convencer um código de programação. Meu trabalho agora envolve uma dimensão técnica que era impensável há 25 anos. Preciso entender de SEO (Search Engine Optimization) para titular meus vídeos, de metadados, de estratégias de thumbnails, de análise de métricas de retenção e engajamento. A luta constante para "furar a bolha" nos obriga a ser, em parte, analistas de dados.

Essa "tirania sutil do algoritmo" também exerce uma pressão criativa. O código tende a favorecer formatos, temas e durações que já se provaram eficientes em reter a atenção. Isso pode desencorajar a experimentação, o risco, a criação de obras com um ritmo mais lento ou uma temática mais complexa. A concorrência não é mais com as outras três ou quatro emissoras de TV; é com milhões de outros criadores de conteúdo, todos disputando a mesma e finita atenção do público, sob o jugo de um curador que não tem rosto, não tem sensibilidade e não se importa com a arte, apenas com os números.

Parte III: Estudo de Caso em Tempo Real – O Legado em Movimento

Seção 7: A Estratégia de O Auto da Compadecida 2 – A Orquestra Descentralizada

Toda essa análise teórica sobre a mudança de paradigma ganha vida e se torna palpável quando olhamos para a estratégia de lançamento de O Auto da Compadecida 2. O filme se tornou, involuntariamente, o estudo de caso perfeito para ilustrar o abismo que separa 2000 de 2025. O contraste não poderia ser mais gritante.

O principal motor de 25 anos atrás, a Rede Globo e seu rolo compressor de comunicação, não está impulsionando o lançamento com a mesma força massiva. Não vemos a saturação em programas de auditório ou matérias extensivas nos telejornais. O que vemos é um modelo radicalmente diferente, descentralizado e baseado em parcerias estratégicas. A distribuidora H2O Films orquestrou o que chamou de "a maior campanha de um filme brasileiro", não pelo poder de um único canal, mas pela soma de muitos. Os canais de comunicação são outros:

  • Alianças com Marcas (Brand Partnerships): A promoção foi ancorada em grandes marcas como Brahma, Santa Helena, Itaú e TikTok. A Brahma, por exemplo, não apenas patrocinou, mas integrou João Grilo e Chicó em sua campanha de São João, criando uma conexão cultural orgânica, em vez de uma simples propaganda do filme.

  • O Digital como Protagonista: A campanha foi estruturada em "ondas", com um foco imenso no ambiente digital. O trailer foi lançado com exclusividade no TikTok, um dos patrocinadores, e foram criados conteúdos específicos para a plataforma, como a série "Conselhos de João Grilo", demonstrando a compreensão de que cada rede exige sua própria linguagem.

  • Construção de Comunidade: O anúncio do filme foi feito em um vídeo em collab entre os perfis dos atores Selton Mello e Matheus Nachtergaele, gerando um engajamento inicial massivo e espontâneo, partindo da própria comunidade de fãs. A estratégia incluiu também o uso de influenciadores digitais para ampliar o alcance de forma segmentada.

A nossa tarefa, hoje, é muito mais complexa que a de 25 anos atrás. É ser, ao mesmo tempo, artista, gestor, estrategista de conteúdo e líder comunitário. O lançamento de

O Auto da Compadecida 2 prova que o monólogo da grande mídia deu lugar ao diálogo das redes e das parcerias. O primeiro filme teve o luxo de ter um país inteiro como sua audiência cativa, guiada por um único e poderoso farol. A sequência tem o desafio e a oportunidade de acender suas próprias fogueiras e, com elas, construir sua própria audiência, uma conversa de cada vez. E essa é a realidade de todos nós, produtores, neste novo ecossistema cultural.



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